“Eu não estou aceitando as coisas que eu não posso mudar, estou mudando as coisas que eu não posso aceitar”
(Angela Davis)
Texto escrito por: Ana Carolina Meireles,
Cíntia Ribeiro,
Natália Brito e Sousa.
A atrocidade nacionalmente testemunhada em torno do caso de estupro sofrida por Mariana Ferrer nos imerge a uma profunda reflexão e sentimento de indignação sobre situações as quais mulheres são submetidas em seu dia a dia. Tão tenebroso quanto a sentença que inocenta o acusado de estuprar uma jovem visivelmente fora do seu estado consciente, foi o tratamento despendido a vítima ao longo do processo judicial, com alegações preconceituosas, desconexas com o fato em lide e depreciativas, invertendo os papeis dos atores e transformando a mulher em culpada pelo crime sofrido. Não bastasse as consequências individuais, mencionado caso pode representar um grave regresso social e grande ameaça a toda as mulheres, à medida que desestimula que novos casos de estupros e assédios sexuais sejam denunciados à justiça.
Literalmente, desde o início da história de nosso país, garotas tem seus corpos violados. De acordo com o Anuário de Segurança Pública de 2020 (1), divulgado no Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ocorre 1 estupro a cada 8 minutos, e 85,7% das vítimas são do sexo feminino. Casos de assédio não se limitam estritamente ao âmbito social e familiar, mas também ocorrem no ambiente de trabalho. Uma pesquisa realizada em maio de 2019 pela Talenses Executive Search (2), consultoria de recrutamento executivo, com 3.215 entrevistados, revelou que 34% das mulheres já sofreram algum tipo de assédio sexual no ambiente de trabalho – algo em torno de um a cada cinco profissionais -, sendo que, em mais de 50% dos casos o assediador é um superior hierárquico. Outro levantamento, dessa vez realizado pela Plataforma Social LinkedIm em parceria com a consultoria de inovação Social Think Eva (3), com 381 mulheres entrevistas, mostrou que, a cada 6 mulheres que sofreram assédio sexual no trabalho, 1 pede demissão, e 35,5% das vítimas afirmam viver sob constante medo.
Outro problema evidente é que as denúncias não chegam até o RH das empresas e, por consequência, não há responsabilização dos assediadores. Segundo a médica do trabalho do TRT-MG, Ciwannyr Machado Assumpção, com divulgação do Portal de Notícias do TRT da 3ª Região, a política de RH das empresas possui papel importante no combate ao assédio: “muitas vezes a estrutura política da empresa é que contribui para tal prática”. É preciso que haja normas que deixe muito claro que essa conduta não é tolerada, que existam canais que possibilitem denúncia e formas de amparo da vítima. A médica também enfatizou que os danos causados à saúde do indivíduo afetado são segmentados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), como psicopatológicos (ansiedade), psicossomáticos (tonteira, gastrite, dor nas costas) e assintomáticos (vida privada, álcool, drogas e isolamento social) (4).
Cabe destacar que o assédio no ambiente de trabalho pode ser moral ou sexual e pode gerar responsabilização do agente se a denúncia for feita ao canal adequado. No caso do assédio moral, a responsabilização pode se dar no âmbito administrativo, cível e trabalhista, com a concessão de danos morais em favor da vítima. Nesse caso a denúncia ao RH do local de trabalho é essencial para a consistência do pedido e maiores chances de convencimento do magistrado.
Quanto ao assédio sexual, este se configura crime previsto no Código Penal Brasileiro (art. 216-A) e pode gerar responsabilização administrativa, cível, trabalhista e penal. Numa interpretação literal da lei, para que configure crime, o assédio sexual deve ser praticado por superior hierárquico da vítima, com a intenção de obtenção de vantagem ou favorecimento sexual. No entanto, em alguns casos paradigmáticos na justiça do trabalho tem sido acolhido o entendimento de que o assédio sexual pode ser por chantagem ou por intimidação, e que independeria da relação hierárquica, uma vez que o cerne da violência consiste no ato de conotação sexual não consentido, do qual resulta desconforto e insegurança no ambiente de trabalho.
Além disso, para que fique caracterizado o assédio deve haver a presença de dois elementos comuns: práticas materialmente repreensíveis e práticas realizadas com o objetivo de obter benefício de natureza sexual. A prova do fato não é nada fácil de ser produzida nesta matéria. Não é incomum que situações de assédio ocorram às escuras, sem a presença de testemunhas ou deixando pouco vestígio, salvo a palavra da vítima. Mas o que prova a palavra da mulher violentada? É preciso refletir sobre o valor jurídico do depoimento da vítima, pois em boa parte dos casos, a sua palavra é o único artefato probatório que resta na acusação. Nos parece que, nessas ocasiões, autoridades julgadoras costumam partir do pressuposto que a vítima está mentindo. Mas por que a desconfiança deliberada em relação à palavra da mulher? Por que achar que ela procura ajuda com a intenção de prejudicar um inocente? Por que procurar julgar o assédio a partir de seus estereótipos, vestimentas, fotografias em mídias sociais? É preciso refletirmos mais profundamente sobre tal pressuposto ligado a aspectos sociais entranhados em nossa sociedade.
Segundo Simone de Beauvoir, em seu livro “O Segundo Sexo: a experiência vivida” (5), “o mundo sempre pertenceu aos machos. Nenhuma das razões que nos propuseram para explicá-lo nos pareceu suficiente. É revendo à luz da filosofia existencial os dados da pré-história e da etnografia que poderemos compreender como a hierarquia dos sexos se estabeleceu. Já verificamos que, quando duas categorias humanas se acham em presença, cada uma delas quer impor à outra sua soberania; quando ambas estão em estado de sustentar a reivindicação, cria-se entre elas, seja na hostilidade, seja na amizade, sempre na tensão, uma relação de reciprocidade. Se uma das duas é privilegiada, ela domina a outra e tudo faz para mantê-la na opressão”.
As mulheres no decorrer do tempo têm conquistado lentamente e gradativamente mais espaço, soltado a voz e aprendido a se posicionar contra restrições e exclusões imposta durante séculos. Mas a luta não acaba enquanto houver mulheres sendo violentadas, oprimidas e humilhadas nesse tribunal arcaico e inescrupuloso, chamado Sistema Patriarcal. Lutemos para que possamos ter voz contra o crime, contra a violência, contra a injustiça, para que possamos ser livres, andar de cabeça erguida e sem medo, e que nenhuma mulher tenha sua alma e seu corpo maculado.
Se você estiver vivenciando assédio em seu ambiente de trabalho, converse com pessoas de sua inteira confiança e busque orientação jurídica. Não se cale. Denuncie! Você não está sozinha.
Referências Bibliográficas:
1. Anuário de Segurança Pública 2020. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, v.1, (14), 2020. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf>
2. Pesquisa: Violência e assédio contra a mulher no mundo corporativo. Talenses Group, 2020. Disponível em:< http://online.fliphtml5.com/gbcem/tdam/#p=1>
3. Matéria: Uma em cada seis mulheres vítimas de assédio sexual no trabalho pede demissão. Forber, 2020. Disponível em: <https://www.forbes.com.br/carreira/2020/10/uma-em-cada-seis-mulheres-vitimas-de-assedio-sexual-no-trabalho-pede-demissao/>
4. Matéria: Mulheres sofrem mais assédio moral que homens, inclusive de outras mulheres. Portal de Notícias TRT 3º Retgião. Disponível em: <https://portal.trt3.jus.br/internet/conheca-o-trt/comunicacao/noticias-institucionais/mulheres-sofrem-mais-assedio-moral-que-homens-e-inclusive-de-outras-mulheres>
5. Livro: BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão europeia do livro, v. 2, 1967.