Maculam nosso corpo e duvidam da nossa palavra: o assédio sexual no âmbito do trabalho

Maculam nosso corpo e duvidam da nossa palavra: o assédio sexual no âmbito do trabalho
Carlos Chagas

“Eu não estou aceitando as coisas que eu não posso mudar, estou mudando as coisas que eu não posso aceitar”

(Angela Davis)

 

Texto escrito por: Ana Carolina Meireles,
Cíntia Ribeiro,
Natália Brito e Sousa.

 

A atrocidade nacionalmente testemunhada em torno do caso de estupro sofrida por Mariana Ferrer nos imerge a uma profunda reflexão e sentimento de indignação sobre situações as quais mulheres são submetidas em seu dia a dia. Tão tenebroso quanto a sentença que inocenta o acusado de estuprar uma jovem visivelmente fora do seu estado consciente, foi o tratamento despendido a vítima ao longo do processo judicial, com alegações preconceituosas, desconexas com o fato em lide e depreciativas, invertendo os papeis dos atores e transformando a mulher em culpada pelo crime sofrido. Não bastasse as consequências individuais, mencionado caso pode representar um grave regresso social e grande ameaça a toda as mulheres, à medida que desestimula que novos casos de estupros e assédios sexuais sejam denunciados à justiça.

Literalmente, desde o início da história de nosso país, garotas tem seus corpos violados. De acordo com o Anuário de Segurança Pública de 2020 (1), divulgado no Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ocorre 1 estupro a cada 8 minutos, e 85,7% das vítimas são do sexo feminino. Casos de assédio não se limitam estritamente ao âmbito social e familiar, mas também ocorrem no ambiente de trabalho. Uma pesquisa realizada em maio de 2019 pela Talenses Executive Search (2), consultoria de recrutamento executivo, com 3.215 entrevistados, revelou que 34% das mulheres já sofreram algum tipo de assédio sexual no ambiente de trabalho – algo em torno de um a cada cinco profissionais -, sendo que, em mais de 50% dos casos o assediador é um superior hierárquico. Outro levantamento, dessa vez realizado pela Plataforma Social LinkedIm em parceria com a consultoria de inovação Social Think Eva (3), com 381 mulheres entrevistas, mostrou que, a cada 6 mulheres que sofreram assédio sexual no trabalho, 1 pede demissão, e 35,5% das vítimas afirmam viver sob constante medo.

Outro problema evidente é que as denúncias não chegam até o RH das empresas e, por consequência, não há responsabilização dos assediadores. Segundo a médica do trabalho do TRT-MG, Ciwannyr Machado Assumpção, com divulgação do Portal de Notícias do TRT da 3ª Região, a política de RH das empresas possui papel importante no combate ao assédio: “muitas vezes a estrutura política da empresa é que contribui para tal prática”. É preciso que haja normas que deixe muito claro que essa conduta não é tolerada, que existam canais que possibilitem denúncia e formas de amparo da vítima. A médica também enfatizou que os danos causados à saúde do indivíduo afetado são segmentados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), como psicopatológicos (ansiedade), psicossomáticos (tonteira, gastrite, dor nas costas) e assintomáticos (vida privada, álcool, drogas e isolamento social) (4).
Cabe destacar que o assédio no ambiente de trabalho pode ser moral ou sexual e pode gerar responsabilização do agente se a denúncia for feita ao canal adequado. No caso do assédio moral, a responsabilização pode se dar no âmbito administrativo, cível e trabalhista, com a concessão de danos morais em favor da vítima. Nesse caso a denúncia ao RH do local de trabalho é essencial para a consistência do pedido e maiores chances de convencimento do magistrado.

Quanto ao assédio sexual, este se configura crime previsto no Código Penal Brasileiro (art. 216-A) e pode gerar responsabilização administrativa, cível, trabalhista e penal. Numa interpretação literal da lei, para que configure crime, o assédio sexual deve ser praticado por superior hierárquico da vítima, com a intenção de obtenção de vantagem ou favorecimento sexual. No entanto, em alguns casos paradigmáticos na justiça do trabalho tem sido acolhido o entendimento de que o assédio sexual pode ser por chantagem ou por intimidação, e que independeria da relação hierárquica, uma vez que o cerne da violência consiste no ato de conotação sexual não consentido, do qual resulta desconforto e insegurança no ambiente de trabalho.

 

Além disso, para que fique caracterizado o assédio deve haver a presença de dois elementos comuns: práticas materialmente repreensíveis e práticas realizadas com o objetivo de obter benefício de natureza sexual. A prova do fato não é nada fácil de ser produzida nesta matéria. Não é incomum que situações de assédio ocorram às escuras, sem a presença de testemunhas ou deixando pouco vestígio, salvo a palavra da vítima. Mas o que prova a palavra da mulher violentada? É preciso refletir sobre o valor jurídico do depoimento da vítima, pois em boa parte dos casos, a sua palavra é o único artefato probatório que resta na acusação. Nos parece que, nessas ocasiões, autoridades julgadoras costumam partir do pressuposto que a vítima está mentindo. Mas por que a desconfiança deliberada em relação à palavra da mulher? Por que achar que ela procura ajuda com a intenção de prejudicar um inocente? Por que procurar julgar o assédio a partir de seus estereótipos, vestimentas, fotografias em mídias sociais? É preciso refletirmos mais profundamente sobre tal pressuposto ligado a aspectos sociais entranhados em nossa sociedade.

Segundo Simone de Beauvoir, em seu livro “O Segundo Sexo: a experiência vivida” (5), “o mundo sempre pertenceu aos machos. Nenhuma das razões que nos propuseram para explicá-lo nos pareceu suficiente. É revendo à luz da filosofia existencial os dados da pré-história e da etnografia que poderemos compreender como a hierarquia dos sexos se estabeleceu. Já verificamos que, quando duas categorias humanas se acham em presença, cada uma delas quer impor à outra sua soberania; quando ambas estão em estado de sustentar a reivindicação, cria-se entre elas, seja na hostilidade, seja na amizade, sempre na tensão, uma relação de reciprocidade. Se uma das duas é privilegiada, ela domina a outra e tudo faz para mantê-la na opressão”.

As mulheres no decorrer do tempo têm conquistado lentamente e gradativamente mais espaço, soltado a voz e aprendido a se posicionar contra restrições e exclusões imposta durante séculos. Mas a luta não acaba enquanto houver mulheres sendo violentadas, oprimidas e humilhadas nesse tribunal arcaico e inescrupuloso, chamado Sistema Patriarcal. Lutemos para que possamos ter voz contra o crime, contra a violência, contra a injustiça, para que possamos ser livres, andar de cabeça erguida e sem medo, e que nenhuma mulher tenha sua alma e seu corpo maculado.

Se você estiver vivenciando assédio em seu ambiente de trabalho, converse com pessoas de sua inteira confiança e busque orientação jurídica. Não se cale. Denuncie! Você não está sozinha.

 

Referências Bibliográficas:
1. Anuário de Segurança Pública 2020. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, v.1, (14), 2020. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf>
2. Pesquisa: Violência e assédio contra a mulher no mundo corporativo. Talenses Group, 2020. Disponível em:< http://online.fliphtml5.com/gbcem/tdam/#p=1>
3. Matéria: Uma em cada seis mulheres vítimas de assédio sexual no trabalho pede demissão. Forber, 2020. Disponível em: <https://www.forbes.com.br/carreira/2020/10/uma-em-cada-seis-mulheres-vitimas-de-assedio-sexual-no-trabalho-pede-demissao/>
4. Matéria: Mulheres sofrem mais assédio moral que homens, inclusive de outras mulheres. Portal de Notícias TRT 3º Retgião. Disponível em: <https://portal.trt3.jus.br/internet/conheca-o-trt/comunicacao/noticias-institucionais/mulheres-sofrem-mais-assedio-moral-que-homens-e-inclusive-de-outras-mulheres>
5. Livro: BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão europeia do livro, v. 2, 1967.